terça-feira, março 21, 2006

A cultura em Portugal

Esta reflexão no "Lóbi do Chá" levanta diversas questões sobre as quais medito muitas vezes.
Com efeito, qual a origem do fraco nível cultural da nossa gente e, tão dramático como esse facto, a aparente incapacidade de alteração dessa tendência que podemos caracterizar como secular ou, em linguagem mais moderna, estrutural?
Para uns, a culpa é da ditadura salazarista, que promoveria o conformismo e a "vida habitual", sem rasgos nem interesses profundos, do povo. Para além dos horizontes curtos (em termos temporais como pelo enviesamento ideológico que esta visão testemunha), qualquer observador mais ou menos imparcial chegaria à conclusão que nesse particular o Estado Novo não diferiria muito da democracia abrilina...
Para outros, a grande responsabilidade recairia na Inquisição, que limitou fortemente a difusão de ideias, a livre criação artística e lançou no opróbrio (ou na fogueira) os prevaricadores.
Para outros, ainda, catastrofistas ou vencidos da vida, não há nada a fazer, Portugal é um caso perdido, o nosso povo é isto, aquilo e aqueloutro ("eles" não pertencem ao povo, são iluminados que tiveram o azar de nascer por aqui).
Há ainda os revolucionários que acham que a coisa só se resolve por meio de uma grande transformação política e social, que passaria pelo Campo Pequeno, pela dinamiz(t)ação cultural, pela adopção de modelos estrangeiros...
Façamos então uma reflexão sobre o tema. Porque é que os democratas se lamentam tanto de que 30 anos de democracia não levaram a grandes desenvolvimentos culturais, a uma maior difusão da estética, da literatura, da música?
Passando por cima da caricatura (no fundo de matriz bem marxista) de que alteração de regime = alteração de mentalidades, o que é que terão feito os sucessivos governos para alterar este estado de coisas?
Nunca se pode esquecer que o nosso país tinha até meados dos anos 50 a maior parte da sua população a residir em meio rural, confrontada com a dura labuta dos campos, sem acesso a "produtos culturais" (expressão horrorosa hoje muito em voga). Ao migrar para as cidades, ao emigrar para França, Alemanha ou Canadá, poder-se-ia dar algum milagre de "despertar cultural"? Dado que na maior parte dos casos a vida dura se manteve, embora noutro contexto, não é crível que essas gerações tenham tido muitas oportunidades de desenvolvimento cultural.
E os seus filhos? Aí entramos no ciclo vicioso da descendência: eu não tive, não pude educar o meu filho a ter porque não tinha bases, pela falta de estímulo caseiro a nova geração acaba por crescer no mesmo ambiente cultural estagnado. E aqui deveria a escola ter um papel a desempenhar; a escola e a televisão (havendo milhões de pessoas em Portugal a dispender duas ou mais horas por dia defronte do pequeno ecrã, o papel deste deveria ser determinante). Mas todos sabemos a tendência dos últimos anos: diminuição do nível de exigência e facilitismo no caso da primeira; abertura aos privados, no segundo, com a crescentemente degradante programação.
Mas não se pense que o problema reside só nas classes média e baixa. Basta olhar para as nossas pseudo-elites para verificar o nível de ignorância e, mais triste ainda (pelas possibilidades tremendas que se abrem quando não há especial limitação pecuniária para fruir bens culturais), pela falta de gosto em saber mais, estudar mais, aprender mais - numa palavra: em exercer a inteligência.
Aquando da chamada revolução cavaquista (e não cultural, embora abundassem os ex-maoístas no governo), houve expectativas por parte de muitos de que finalmente as coisas iam mudar. Chovendo milhões de Bruxelas, agora sim, íamos ser um país desenvolvido, aberto (só em certo sentido, afinal...), com uma mentalidade nova. Como se vê, outra vez o raciocínio mecanicista marxista a funcionar. E o que é que vimos: pobres e ricos, remediados e opulentos, todos se dirigiram de golpe, não às bibliotecas, não às galerias, não às salas de teatro, ópera ou concerto, mas - às catedrais do consumo. Chegada a boa nova dos céus de Bruxelas (sempre nublados, aliás), ei-los, os fiéis, a correrem em massa aos hipermercados, aos centros comerciais, às lojas modernas. Multibanco, Jumbo, Continente, Zara, CD, plasma, LCD, direcção assistida, são exemplos de palavras mágicas para os portugueses que não configuram propriamente um grande progresso cultural.
Haverá remédio? A minha opinião é que a base de qualquer desenvolvimento cultural deve ser o estudo e a promoção da cultura específica de um país: sem conhecer as suas raízes nenhum povo pode ter estima por si próprio e entrega-se nas mãos de um qualquer totalitarismo: hoje, já não plasmado num sistema político repressor mas sob um invólucro de néon - modernaço, pois então. E o cerne da questão é que esse caminho infelizmente transcorrido por Portugal nas últimas três décadas foi pensado, estudado e promovido: nas escolas e universidades, nos jornais, na televisão. Foi fácil confundir um regime alegadamente condenável, que exaltava os símbolos nacionais, com esses mesmo símbolos. E de aí partir para o "homem novo" democrático. Ainda um reflexo marxista.
A verdadeira revolução cultural é aquela que altera as mentalidades; não há dúvida que Portugal testemunha o pior dos cenários: a adopção de princípios destrutivos da identidade nacional com a convicção de que se pode partir do "zero" democrático para a alvorada libertadora, tudo condimentado com a cultura do consumismo. Um casamento de conveniência entre duas ideologias aparentemente contraditórias e antagonistas mas com alguns objectivos comuns. Para nossa desgraça.

6 comentários:

vs disse...

Reflexão interessantissima do FSaqntos.

Mas isto tem mais a ver com pessoas do que com ideologias.
Outros países da Europa (e do mundo) têm o mesmo sistema político-económico que Portugal e....é só fazer as comparações.

Isto prende-se mais com coisas que o FSantos abordou:
- a Inquisição, de que herdamos o espírito misto de voyeur/delator
- o catastrófico sec.XIX português
- a I República (um desfile de ineptos e de baderna institucionalizada)
- o Estado Novo, com a sua 'Pax Ruris' anacrónica, a 'aura mediocritas' erigida em estalão geral de valor, o 'condicionamento industrial, o espírito provinciano e a tacanhez e invejazinha (essa Instituição) nacional
- e a presente democracia (com minúscula) largamente incompetente, também ela algo tacanha e pejada de complexos de esquerda.

....mas não me admira...os actuais democratas são os mesmos (ou os filhos,netos e demais familiares) da 'tropa' que nos pespegou com a I República e com a II República.
Saíram das mesmas casas, logo....

O ciclo vicioso de que fala eterniza-se e, francamente, não estou a ver como possa ser quebrado.

JSM disse...

Bravo meu caro FG Santos
Mas este 'bicho' é difícil de pegar de 'caras'. Talvez uma cernelha, porque nos confronta a todos.
Gostei de ler:'sem conhecer as suas raízes, nenhum povo pode ter estima por si próprio e entrega-se nas mãos de qualquer totalitarismo'!
O diagnóstico, a origem da doença, foi abordado com génio pelo Pessoa!
Também tem interesse a página que escreveu estabelecendo as diferenças entre cultura e erudição. E inteligência. Não falemos do chamado povo, basta ter em conta as tais 'pseudo-elites'.
O comentador anterior focou alguns aspectos importantes. Mas estaríamos aqui um ano inteiro a descobrir novas facetas da mesma realidade. Você disse estrutural?
Quem manda por aqui são naturalmente os Beirões. Os Romanos já tinham notado o excessivo individualismo. Por outro lado a aventura da independência, limitou direitos, exigiu mais obediência. Com a obediência veio o medo. A escola não podia por isso ser criativa.
Contradições e mais contradições.
Não houve feudalismo em Portugal!
As tentativas de mais um galo na capoeira acabaram mal...
Sempre fomos uma economia de direcção central! Descobrimentos, Companhias majestáticas, Portugal telecom...
Já reparou que não existe oposição em Portugal?! Mesmo sem censura?!
E como nós monárquicos sabemos isso...
Um abraço e parabéns pelo tema escaldante!

Paulo Cunha Porto disse...

Meu Caro FSantos:
Penso que essa queixa nossa é sinónimo do mal geral do tempo. A cultura como factor de importância para uma evolução espiritual será sempre e em toda a parte exclusivo de grupos restritos. Como avatar de consumismo, da fruição sem permanência, pode-se aumentá-la, mas só mudando interesses geracionais, que o grosso das pessoas quer é saber ´conversar sobre o que interessa à sua roda de amigos, cada fim de semana. Entretanto, dentro da Tua preocupação, há que salvaguardar os santuários que permitam a resistência.
Ab.

Flávio Santos disse...

«A cultura como factor de importância para uma evolução espiritual será sempre e em toda a parte exclusivo de grupos restritos.» Não necessariamente. Nunca me hei-de esquecer de ter assistido a um concerto numa igreja em meio rural austríaco e estarem dezenas de humildes camponenses a assitir com o maior interesse.

Mendo Ramires disse...

Estes textos de fundo — embora difíceis para os actuais hábitos de leitura... — são os verdadeiros alicerces da blogosfera nacional. Parabéns por mais um 'post' de brilhante pensamento.

Paulo Cunha Porto disse...

Mas achas que não é uma variante do auditor de concerto citadino? Terá isso modificado a orientação das respectivas vidas ou, ao menos, nelas influído? Os que são capazes disto é que são a ultraminoria. Por cá também há predisposição musical importante, em algumas zonas, como o Alentejo. E ensino do manejo dos instrumentos mais diversos. Mas potenciar a coisa é que é o busílis.
Ab.