São bem conhecidas as dificuldades que enfrentavam os compositores soviéticos em poder dar livre expressão aos seus sentimentos musicais. Quando a estética de uma obra se afastava do "realismo socialista" era-lhe logo aposto o rótulo de obra "formalista", um termo que punha os criadores numa situação de quase párias. Muitos compunham então obras mais "épicas" (em particular no período da II Guerra) que, a despeito de se conformarem melhor com as exigências oficiais, nem por isso deixavam muitas vezes de ter um enorme valor artístico, de que é exemplo a Sétima Sinfonia de Shostakovitch ("Leninegrado").
O grande pianista Andrei Gavrilov (n.1955) analisou, numa óptica necessariamente subjectiva, o peso da opressão estalinista reflectido nas Sétima e Oitava Sonatas para Piano de Prokofiev. Dêmos-lhe a palavra:
«A atmosfera de ansiedade e medo em ambas [as sonatas números sete e oito], os tons arrepiantes e o tema recorrente do som das batidelas na porta trazem-nos de imediato à mente uma época que todos desejaríamos esquecer mas não podemos.»
Gavrilov aborda de seguida a Sétima Sonata:
«Desejando parodiar os sons associados aos Pioneiros, exemplo acabado da juventude soviética artificialmente alegre mas oca, Prokofiev introduz o seu tema nos primeiro e terceiro andamentos, pondo em relevo os monstrozinhos que denunciam familiares, que se consideram a si próprios como "heróis" e proclamam como a mais absoluta das verdades a propaganda oficial. Embora a agressão seja o sentimento dominante existem momentos líricos maravilhosos no primeiro andamento. Mas a agressão triunfa e esse andamento termina com os temas recorrentes da ansiedade, medo e batimentos na porta. (...)
O final é, estou em crer, um dos mais impressionantes retratos do totalitarismo na literatura pianística. Rivaliza com o tema da "invasão" [pelas tropas alemãs, um motivo de um crescendo arrepiante - Nota de FSantos] na Sétima Sinfonia de Shostakovitch. (...) O final da Sétima Sonata constitui a apoteose da violência - a brusca, mecânica e metódica destruição de todo o ser vivo.»
Abordando a Oitava Sonata, a minha preferida, Gavrilov refere que está «imbuída de uma expressão muito pessoal e espiritual (...) e eu oiço antes de mais a dor do compositor.» Esta sonata é de facto mais pessoal e atinge cúmulos de expressividade, tanto nos temas mais lentos como nos mais rápidos, de que é paradigma o final do terceiro andamento, de resto de terribilíssima dificuldade de execução, exigindo-se ao pianista superior capacidade técnica e também a capacidade de expressar musicalmente a angústia do compositor.
Para quem não conhece estas obras fundamentais da música do século XX recomenda-se que rapidamente ponham cobro a essa lacuna. Os que têm a felicidade de já as ter ouvido compreenderão o meu conselho.
Boa música.
sexta-feira, junho 16, 2006
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4 comentários:
O que a gente não aprende aqui.
E eu sou amigo deste sr. gajo!
ah pois é!
Legionário
Muito bem! De onde é esse texto de Gavrilov?
Infelizmente não tenho nenhum link pois o texto vem incluído no CD da Deutsche Gramophon em que Gavrilov interpreta as 3ª, 7ª e 8ª sonatas (número de edição: 435 439-2).
obrigado, I'll be on the lookout!
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