domingo, novembro 12, 2006

"Não há outro mais leal"

Em 1991 a editora Átrio publicou, com o título supra, um opúsculo de António Manuel Couto Viana, composto por dois poemas, que a seguir se reproduzem.
A mágoa do poeta, a nostalgia pela glória passada da Pátria, recorrentes na obra do autor, assumem aqui um tom quiçá mais agressivo, «a raiva do meu brado», segundo o poeta.
*
*
*
*
*
*
*
*
*
*
*
*
*
O NAUFRÁGIO DE MACAU

Para a Teresa Bernardino

A derradeira nau,
Partindo o leme e o velame roto,
Naufragou em Macau,
Por traição do piloto.

E fora a mais leal:
Em quatro séculos hasteara à ré
O pavilhão de Portugal,
Para glória do Império e defensão da Fé.

E era santo dos santos o seu nome,
Mas erguia na gávea o demo de vigia
Que sem um renegar que o vença e dome
A faz varar na vaza desta maré vazia.

Tripulou-a Camões
Que ali lembrou, previu: — Dos Portugueses,
Com seus profanos corações,
Houve traidores algumas vezes.

Tripulou-a Pessanha,
Murmurando entre névoas de ópio e olvido,
Como quem num queixume e presente desdenha:
“Eu vi a luz em um país perdido.”

Da última da Armada
Que em novos mares buscou cada porto ignorado;
Da jamais apresada,
Tendo ao pirata vil o fuzil apontado,
Hoje como não resta nada
Mais do que o pranto da História e a raiva do meu brado:

— Quem impede o traidor de morrer enforcado?


António Manuel Couto Viana
10-05-1985
*
*

AQUELA MORTE NAQUELE DIA

Para o Beckert d'Assumpção, descendente do Barão d'Assumpção, que mandou edificar o Farol da Guia, o primeiro das costas da China.

Os castelos e as quinas começam a sangrar.
Macau, em lágrimas, comove.
Vai engoli-la o céu? Vai naufragá-la o mar?
A névoa esconde a cor das bandeiras no ar.
Chove.

Paira o fantasma de uma igreja. Um sino
Põe-se, lento, a dobrar, moribundo e pesado.
Nenhum Natal acode. A estrela do destino
Não anuncia o Nascimento do Menino,
Mas o Nome de Deus crucificado.

Só cemitérios, cinzas, sombras vagas…
“Não suspireis. Não respireis.” (Alguém murmura?)
Escorrem solidão as faces e as chagas.
A nau-espectro afunda-se nas vagas.
Apagou-se o farol. É noite escura.

O poeta rasgou o alvor da epopeia.
Dela, aqui, não restará lembrança…
O heróico ritmar de uma túmida veia
Extinguiu-se na vaza da pátria agora alheia:
Já não pode rimar futuro com esperança.

Cinco séculos quase a existir Portugal,
Macau, em sangue e lágrimas, desfalece e comove.
Mão assassina assina, na pedra sepulcral,
Um nome ateu, traidor, sobre a data final:
Aos 20 de Dezembro. Ano 99!

António Manuel Couto Viana
19.04.1987

2 comentários:

Anónimo disse...

Amigo FSantos olha o que fui ler escrito pelo Dragão (até parece que estávamos sobre escuta!):
"Aturámos ainda, por auto-suplício, uns aliados, os ingleses, piores que os inimigos todos juntos. E,apesar disso tudo, com todas as misérias, que são muitas, à beira da extinção provavelmente, mas ainda cá estamos"
Pois é, pois é, como diz o ditado - Quem tem assim amigos não precisa de inimigos!

P.S. Já limpei o correio.

Legionário

JSM disse...

Caro FSantos
De um postal ao outro a questão mantém-se. Como é possível que estes dois poemas digam tão pouco a tanta gente! A uma geração que foi esquecendo porque quis esquecer, e a uma geração mais nova onde não houve transmissão, e que por isso não entende o drama que estes versos choram.
O mesmo deserto, a mesma falta de fé em qualquer coisa para além do consumismo imediato... e estúpido.
Um abraço com fé.