domingo, janeiro 14, 2007

Linhas de Elvas

«Janeiro de 1659, a 14. Não me esqueço do livro velho denunciando-nos a cumplicidade do nevoeiro. O nevoeiro, bom amigo desde que ao seu mistério confiámos o regresso do Encoberto, envolvendo-nos então numa massa confusa, protegeu-nos contra o adversário, incomparavelmente superior em municiamento e disciplina.
Demos connosco nos seus redutos, debaixo da capa parda da bruma. Caímos em cheio e a valer. Na mancha densa da névoa, rufaram tambores de súbito, de algum modo como na surpresa bíblica de Gedeão. O castelhano, iludido nas indecisões da manhã, não se apercebeu a tempo da nossa ordem de batalha. Tanto bastou para que as suas linhas se rompessem de pronto e pelo boqueirão aberto se engolfassem os terços do conde de Mesquitela. Da praça D. Sancho Manuel carregava sobre o inimigo já desmoralizado, batendo-se à toa, sem nexo. Alto, o sol límpido de Janeiro sacramentava-nos agora num esplendor de apoteose. D. Luís de Haro, sangrando na ferida enorme da sua vaidade pisada, abandonara o exército ao duque de S. Germano, largando em desfilada para Badajoz. Já o sol declinava. Na cidade, ao longo dos muros, como numa cruzada santa, passeara-se o Santíssimo durante o estridor da batalha. Moribundos, os pestíferos erguiam-se dos catres para contemplarem ainda, com as pupilas dilatadas, a hora do resgate, descendo dos cabeços fronteiros. A vitória tivera a rapidez das vinganças divinas (...). De facto, as nossas perdas não passavam de setecentos homens entre mortos e feridos. Os castelhanos, contando os prisioneiros, abandonavam no campo cerca de onze mil baixas - tantas como o pequeno exército [comandado por D. António Luis de Meneses] saído de Estremoz para salvar a cidade em perigo.
Mas que resta hoje da glória excepcional desse Janeiro de 1659? Sobre uma colina silenciosa um padrão silencioso. É bem o símbolo de Portugal arrastando a sua agonia na impassibilidade sacrílega dos homens e das coisas!»
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António Sardinha, "Na Feira dos Mitos", Edições Gama (2ª edição, 1947).

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