quarta-feira, outubro 10, 2007

Na morte de João Coito

Na morte de João Coito, proponho-vos a leitura de um artigo que o jornalista escreveu a propósito da morte de um outro jornalista, o grande Manuel Maria Múrias. Intitulou-o
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O JORNALISTA QUE ABRIL ENCARCEROU...
Faleceu na semana passada, em Cascais, um dos mais ilustres jornalistas portugueses das últimas gerações. Chamava-se Manuel Maria Múrias. Conheci-o muito bem ao longo da sua carreira, tive alguns desaguisados com ele quando dirigiu a informação na R.T.P., cortou-me algumas crónicas por não conformes com a sua maneira de pensar, mas não posso deixar de reconhecer a fidelidade que sempre teve às suas convicções sem alguma vez prejudicar alguém por não concordar com os seus princípios. Era um homem corajoso, culto, agarrado à família e aos amigos (não me esqueço que a fotografia de sua Mulher estava sempre presente, em lugar distinto, na sua mesa de trabalho), convivente, respeitado pelos adversários e também adulado por alguns trabalhadores da R.T.P. que depois se revelaram seus ferozes inimigos. Quem conheceu, como eu, a antiga R.T.P., sabe avaliar melhor do que ninguém onde pode levar a hipocrisia, o fingimento e a perversidade...
Depois de Abril, isto é, depois de instauradas as «liberdades», o Manuel Múrias peregrinou por várias cadeias, Caxias, Peniche, Penitenciária, Linhó (onde um dia o fui visitar, misturado com drogados e delinquentes que o estimavam e escutavam). Os seus artigos em A Rua, de que foi director, e no Bandarra constituem, segundo o testemunho de Norberto Lopes, que se situava nos antípodas das suas convicções políticas, as páginas mais brilhantes do jornalismo político português do fim do século. O Diário de Notícias, ao fazer a resenha biográfica na notícia do seu falecimento, citava um dos seus juízos de valor a propósito do 25 de Abril: — «Foi, aliás, a democracia que fez com que muitos dos actuais presidentes de câmara — que dantes vestiam dos alfaiates das respectivas terras — passassem a vestir-se de alfaiates de luxo e a ter a massa que têm.» É ou não verdade que a verdade lhe assiste em muitos casos? Dantes eram, em regra, os «homens bons» dos concelhos que ascendiam a tão altos lugares, sem ordenado, nem mordomias, nem reforma. Os democratas que nos governaram podem gabar-se de ter encarcerado um distinto e fogoso jornalista por utilizar as palavras portuguesas com arte, com fervor, e, às vezes também, com destempero e acrimónia. Mas então para que se fez o 25 de Abril? Não foi, como asseverou Loureiro dos Santos no seu artigo, para «todos podermos exprimir as nossas opiniões»?... Pobre Manuel Múrias! Os últimos anos de vida não lhe foram fáceis. Proscrito da sua actividade de sempre — até lhe encerraram o jornal! — viveu triste, doente, auferindo a reforma miserável que o Estado democrático atribui a jornalistas que descontaram sobre ordenados em que 20 escudos correspondiam a um dólar americano!... Morreu pobre e triste, ainda mais aferrado às suas convicções que Abril lhe reforçou. Ele sabia, por exemplo, que o Fernando Pessoa, apesar de ter vivido num tempo em que os cárceres estavam cheios, não foi incomodado por escrever que «Afonso Costa é um dos maiores bandidos que têm aparecido à superfície da política lusitana» e que o Eça escreveu um O Conde d'Abranhos, sem ir parar à prisão ou a tribunal: — «Quantas vezes me disse o Conde ser este o segredo das Democracias Constitucionais: “Eu, que sou Governo, fraco mas hábil, dou aparentemente a soberania ao povo, que é forte e simples. Mas, como a falta de educação o mantém na imbecilidade, e o adormecimento da consciência o amolece na indiferença, faço-o exercer essa soberania em meu proveito... E quanto ao seu proveito... adeus, ó compadre!”» (...)

João Coito

In "O Diabo", 17.10.2000, pág. 4.

1 comentário:

Flávio Gonçalves disse...

Como só compro "O Diabo" de quando em vez desconhecia que o João Coito tinha falecido... era dos meus cronistas favoritos.